segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Estar certo enquanto homem - as virtudes cardeais -

O último grande mestre da cristandade ocidental ainda não dividida, Tomás de Aquino, designou a virtude humana como ultimum potentiae, ou, em linguagem de hoje, o máximo daquilo que uma pessoa pode ser. É evidente que a concepção expressa nessa breve sentença nem sequer permite o aparecimento das famigeradas deformações que, de diversos modos, costumamos associar à palavra virtude. Nem vale a pena falar muito a respeito delas. O que sim vale a pena é procurar compreender de forma mais exata alguns elementos que a definição de Tomás traz consigo e, à primeira vista, talvez também esconda em si.

Quem, por exemplo, fala do ultimum e, portando, do máximo, já pensou ao mesmo tempo que há também um penúltimo e um primeiro. Com isso, afirma-se também algo a respeito do homem: que a sua vida quotidiana se situa em meio a esses diferentes graus de realização, procurando, é certo, o máximo do poder-ser, mas não necessariamente atingindo-o. Que o ser humano é, no seu núcleo mais profundo, um ser-que-se-torna; em todo caso, não é meramente um ser conformado desta ou daquela maneira, não é algo pura e estaticamente existente, mas sim um sujeito do acontecer, realidade dinâmica, como aliás todo o Cosmos.

Naturalmente, isto não é uma concepção especificamente cristã. O poeta grego Píndaro já há mais de dois mil anos formulou-a na famosa frase: "Torna-te aquilo que és!" - com o que, na realidade, se diz (e parece tão estranho) que nós ainda não somos o que, no entanto, somos. Disto também está convencida a sabedoria teológica do cristianismo, quando reconhece verdadeira virtude somente naquele que realiza o máximo do que lhe é possível ser.

Já algo especificamente cristão se encontra na resposta à pergunta sobre como se deverá pensar o primeiro começo desse processo de auto-realização: assume-se claramente que o início já vem dado previamente. O homem - quando com liberdade faz o bem - não está pondo os pés pela primeira vez num caminho ainda não trilhado ou sequer aberto; o agir moral (isto é, todo agir humano baseado em decisão e responsabilidade) vem a ser antes uma continuação, um levar adiante pelo caminho algo já começado e que se encontra em processo. Muito antes de se decidir livremente, já há algo que orienta o homem para seu alvo; como uma seta disparada, ele já está a caminho. A teologia fala aqui de um querer natural, de um impulso que nos é inerente por natureza e que seguimos quando fazemos o bem. No entanto, essa afirmação a respeito da natureza humana e do querer natural é precária e, por assim dizer, provisória. Somente a compreendemos bem quando entendemos a "natureza humana" como aquilo que o homem é em função da Criação. No ato de Criação, foi o homem posto por Deus a caminho, num caminho ao final do qual está aquele máximo que pode chamar-se, em sentido pleno, Virtude: a realização do projeto divino incorporado à criatura.

Quem pensa nisto consegue entrever a exigência quase inatingível que reside no conceito de virtude. E talvez se lhe torne clara, de repente, aquela sentença um tanto enigmática do Novo Testamento: "Ninguém é bom senão só Deus" (Mc 10, 18).

2. A prudência: ver aquilo que é

Se perguntarmos, então, sóbria e objetivamente, o que se pode exigir e esperar em termos de "ser-bom" do homem comum - e, portanto, de cada um de nós -, logo pede a palavra a antiga sabedoria que fala do espectro de quatro cores em que se desdobra a luz da perfeição. É a doutrina das "Virtudes Cardeais": Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança. O termo latino cardus significa gonzo, que abre o portal da vida.

Esses quatro nomes certamente já foram ouvidos muitas vezes, sem que seu significado fosse levado a sério. No momento, porém, em que isto se faça, a situação torna-se complicada. Por exemplo cabe já perguntar: como pode a Prudência ser virtude? E a compreensão tornar-se-á ainda mais difícil quando nos disserem que a seqüência não é casual, mas obedece a uma lógica de significado e de hierarquia: à Prudência, cabe, portanto, o primeiro e mais elevado posto. E mais ainda, tal formulação nem ao menos é precisa; a rigor, a Prudência não ocuparia um lugar como elo dessa série: ela não é algo assim como a irmã das outras virtudes; ela é a sua mãe e já foi designada literalmente como "genitora das virtudes" (genitrix virtutum).

Desse modo, ninguém poderia - e, por estranho que possa parecer, de fato é assim - praticar a Justiça, a Fortaleza ou a Temperança a não ser que seja ao mesmo tempo prudente. Ao mesmo tempo, e até antes.

Pelo uso comum da linguagem e pelos hábitos de pensamento, temos alguma dificuldade não só para concordar com o afirmado, mas até para entendê-lo. Pois não dizemos na língua alemã que é "prudente" (Klug em alemão significa prudente e esperto) quem é esperto e com ágil inteligência logo percebe como "levar vantagem"? E não dizemos que Fulano ou Sicrano é "prudente" demais e, portanto, não defende com determinação e coragem suas convicções? Tudo isto, sem dúvida, é certo. No entanto, devemos esquecer estes casos, deixá-los de lado e lembrar-nos de outras situações que nos são igualmente familiares - por exemplo, de que, digamos, em caso de conflito, ninguém pode tomar uma decisão justa se não conhece a realidade: como as coisas são e em que pé estão. O mais puro desejo de Justiça, a "melhor das boas vontades", a "boa intenção", tudo isto não basta. Antes, a realização do bem concreto pressupõe sempre o conhecimento da realidade.

Isso se pode exprimir também do seguinte modo: o agir humano é bom e ordenado quando procede da verdade, que afinal de contas nada mais é que o vir-a-encarar a realidade. E precisamente este é o sentido da prudência e de sua posição privilegiada: que - tanto quanto possível - vejamos a realidade, que eu veja como realmente são os elementos que compõem a situação que exige de mim uma decisão.
Este "ver as coisas", entretanto, não é de modo algum um assunto acessório que se possa considerar com ligeireza. Além do mais, a capacidade de "ver a realidade" é ameaçada de diversas maneiras. Pois não se trata de uma neutra contemplação da natureza, mas da incorruptível "busca da verdade" a respeito de situações nas quais costumam estar fortemente envolvidos fatores de interesse pessoal. O que importa, portanto, é fazer calar nossos interesses - e, talvez também ouvir o outro, possivelmente um oponente. Quem não consegue isto, ou não está disposto a isto, jamais chegará a ver a realidade como ela é.

Mas isso é apenas o começo e a primeira metade da Prudência. A outra, bem mais difícil, consiste em transformar aquilo que foi visto, a verdade das coisas, em diretriz do próprio querer e agir. Só então se perfaz a virtude da Prudência, que com razão foi definida como "a arte de decidir-se corretamente". Só quem domina esta arte pode ser considerado um homem moralmente maduro e adulto. Para ele foi cunhada a palavra da Sagrada Escritura: "Se o teu olho é simples (simplex), então todo teu corpo estará na luz" (Mt 6,22).

3. A justiça: dar o que é devido

Quem hoje pensa em justiça, sobretudo se é jovem, logo se lembrará do estribilho "sociedade". A sociedade parece-lhe a injustiça encarnada, com o que, talvez, não deixe de ter razão. No entanto, deve deixar-se lembrar de que estamos agora falando da justiça como virtude, portanto de uma atitude que só pode ser exigida da pessoa singular e por ela realizada.

A Justiça já foi chamada também "arte de conviver", uma formulação que por sua vez pode também ser mal-interpretada, como se não se tratasse de nada mais do que de arranjar-se com os outros. Não é isso, no entanto, o que se quer dizer, e sim, mais propriamente, um conviver em que cada um recebe o que lhe é devido: "A cada um o que é seu", como diz a antiga sentença.

Precisamente isto - assim o tem afirmado o clássico pensamento ocidental desde os antigos gregos até as encíclicas sociais dos papas -, precisamente isto é a Justiça: a vontade, constante de dar a cada pessoa, com quem nos relacionamos, aquilo que lhe é devido.

A Justiça é pois, como vemos, algo que está em segundo lugar; ela pressupõe algo diferente de si mesma: a saber, que, primeiro, haja alguém a quem algo é devido e que aquele que é convidado a exercer a Justiça aceite esse dever.

Agora, quanto à pergunta sobre se e por que razão algo é devido ao outro (e, naturalmente, também a mim), e sobre o que se lhe deve dar ou conceder - a esta pergunta não se responde facilmente. Que ao trabalhador é devido o justo salário, ainda é o mais fácil de evidenciar (ainda que na época dos campos de trabalhos forçados isto não seja tão evidente quanto parece).

No que deve residir, então, a causa de que a todo aquele que porta uma face humana, simplesmente pelo seu ser-homem, algo lhe seja devido inalienavelmente? Por exemplo, que a sua honra como pessoa seja respeitada. O conceito de pessoa, de fato, é aqui decisivo - enquanto se compreende "pessoa" como um ente que existe para seu próprio aperfeiçoamento e realização. Mesmo assim, em caso de conflito, ao se chegar aos extremos, não basta retroceder ao mero ser-pessoa (como supunham alguns filósofos idealistas). É necessário nesses casos, poder colocar em jogo uma instância absoluta, mais além de qualquer instância humana, ou, dito de outro modo: o outro deve ser-me intocável por eu o ver como ente criado por Deus como pessoa.

Não se pense ser esta uma concepção especificamente cristã ou teológica. Foi um
chinês confuciano quem declarou - aos seus colegas da comissão da UNESCO para a reformulação dos direitos humanos, presumivelmente atônitos -, que lhe havia sido transmitido por tradição, como fundamento dos direitos humanos, que "O Céu ama o povo e quem exerce o poder deve obedecer ao Céu". E Emanuel Kant - que não era lá propriamente um teólogo cristão - diz: "Temos um santo regedor e o que Ele deu ao homem de sagrado é o direito dos homens".

Garantir e proteger esse direito é o sentido intrínseco do Poder. E quer se trate do poder político ou da autoridade em círculos menores (família, unidade militar, empresa) sempre vale: quando o Poder não cuida da Justiça, ocorre invariavelmente a injustiça, e não há injustiça mais desesperadora no mundo dos homens do que o uso injusto do poder. E, no entanto - e é uma idéia tão desagradável - poder do qual não se pode abusar, no fundo não é poder...

Mas aquele que aprofundar mais deparará com uma nova condição, ainda mais radical, no tema da Justiça. Pois o mundo dos homens está feito de tal maneira que, em alguns casos determinados e altamente significativos é impossível dar efetivamente ao outro aquilo que - sem sombra de dúvida - lhe é devido. Os antigos pensavam aqui, antes de mais nada, nas relações com Deus; a Ele não podemos, na verdade, dizer, nem mesmo a respeito de um único instante: "Já te dei o que te devia, agora estamos quites". Por isso, por essa incapacidade da Justiça, os grandes mestres do cristianismo afirmavam que no caso das relações com Deus, deveria entrar, em vez da Justiça, como substituto, como Ersatz, a modo de recurso improvisado, a religio: entrega, adoração, disposição para o sacrifício, atitude de reparação.

Mas também no âmbito do convívio humano há dívidas que, por natureza, não podem realmente ser pagas e quitadas. Também à minha mãe, a meus professores, aos justos administradores das funções públicas não posso, em sentido estrito, restituir na medida em que lhes devo; se atentarmos bem, repararemos que não sou capaz de "pagar", de modo que recebam tudo o que lhes devo, sequer a amabilidade de um garçom ou a lealdade de uma empregada doméstica. E assim, nos casos devidos, deve novamente entrar no lugar da Justiça (impossibilitada de realizar-se) outra coisa: a piedade. A atitude de honra e de respeito (não realizado apenas interiormente) que diz: "Devo-te algo que não posso pagar, e manifesto que estou consciente disso através dessas atitudes".

Quando nos sabemos assim agraciados e endividados diante de Deus e dos homens, não pautamos tão facilmente nossa vida pela atitude de reivindicações que pergunta: "O que me é devido?".

4. A fortaleza: o mais fraco resiste

Fortaleza, heroísmo, vitória: tais conceitos sempre são pensados em bloco. Isto pode não estar errado, mas simplifica demais a realidade. Já um dos primeiros escritores da Igreja chama a atenção para esse fato: "Vencemos quando nos matam". E quando ouvimos um dos grandes mestres do cristianismo medieval dizer que talvez os soldados menos fortes - bem entendido, no sentido da terceira virtude cardeal - sejam os melhores soldados, então a dificuldade do tema se mostra bem surpreendente. E se tudo isto não bastar, considere-se ainda a sentença de S. Ambrósio: "A Fortaleza não deve fiar-se de si mesma". Apresento estas sentenças a título de prefácio para abalar um pouco convicções demasiado arraigadas.

O núcleo daquilo que verdadeiramente está implicado na virtude da Fortaleza é exposto pela ironia de Bertold Brecht. Esse autor afirma que desconfia imediatamente quando ouve dizer que um navio precisa de uma tripulação de heróis: nestes casos pergunta-se sempre se não haverá algo de errado com esse navio, se não estará meio velho ou podre. Provavelmente, Brecht não imaginava que, quinze séculos antes dele, alguém já havia dito quase exatamente o mesmo. Este alguém é ninguém menos do que S. Agostinho que, é bem verdade, não fala de um navio mas do mundo como um todo: com o mundo realmente há algo de errado, já que nele há o mal e o mau. E precisamente por isso é necessária a Fortaleza. Pelo fato nu e cru de que é preciso existir Fortaleza, atesta-se o poder do mal no mundo.

Em outras palavras: o bem não se impõe por si mesmo, como opinam os liberalismos, para que isto ocorra, há necessidade do empenho da pessoa. Empenhar-se pela realização do bem contra o poder do mal (que às vezes também poderá ser um super-poder), eis aí circunscrito de forma bem completa aquilo que perfaz o ato da virtude da Fortaleza. "Empenhar-se": com isto não se indica um agir qualquer, mas um agir pelo qual o agente está disposto a sofrer um prejuízo. Com estouvados saltos de esqui ou perigosas escaladas de montanha (com o que, não há muito tempo, tentou-se explicar - de modo exaustivamente inadequado - a virtude da Fortaleza na televisão alemã) consegue-se perfeitamente não atingir aquilo que é decisivo nessa virtude. Com um tal enfoque, por um lado, exige-se demais, se, de fato, a Fortaleza deve integrar os elementos do "estar-certo" de todo homem (pois como pretender que tais proezas sejam realizadas pelo "homem comum"?); por outro lado, pede-se de menos. Em uma palavra: falta seriedade. Na verdade, em geral, o ato de virtude é algo totalmente sem brilho, como, por exemplo, assumir ser publicamente ridicularizado por tomar o partido de uma causa justa.

Mas quem resiste ao poderio do mal como empiricamente mais fraco, talvez arrisque coisas que tocam já mais perigosamente a existência: a liberdade, a saúde e a vida. No final das contas, toda a verdadeira Fortaleza baseia-se na disposição para a morte; ou, mais precisamente, na disposição para o testemunho de sangue. O verdadeiro símbolo da Fortaleza é o mártir. Mas a ausência de brilho permanece através de todos os graus de sua realização, como uma característica praticamente distintiva: nada se diz de ousadia, de risco, nem de "empenho heróico" (aliás, quando disto se fala, já se trata, quase com certeza, de um sinal de que nem existe a situação que exigiria autêntica Fortaleza).

É precisamente ao extremo teste da virtude, ao próprio martírio, que costuma faltar completamente o brilho do "heróico". A ousadia, a disposição de partir para a luta, o espírito vital de ataque do primeiro momento desvaneceram-se, e a dúvida talvez esteja penetrando até à própria consciência a tal ponto que o sacrificado - quando, digamos, a porta da masmorra se fechou definitivamente atrás dele -, é assaltado pela pergunta de se, afinal, não seria ele o idiota. Do mártir, afinal de contas, se fala post festum; as coroas de flores da veneração só vêm depois. Antes, na própria consumação do martírio, nada há senão um prisioneiro, um solitário, um objeto de riso e, sobretudo, um emudecido. Só lhe fica então a paciência que, ao longo de toda a tradição espiritual, tem sido considerada parte fundamental da Fortaleza. Hildegard von Bingen chama à paciência coluna "que por nada se deixa amolecer". E nós, tarde nascidos, começamos a perceber porque os antigos consideravam como a parte essencial da Fortaleza o resistir, e não o atacar.

5. A Temperança: defender-se da auto-destruição

Um autor tão moderno como James Joyce, cuja obra principal foi chamada - não sem razão - de "missa negra", considerou durante toda a sua vida o ato sexual como algo vergonhoso. Um fato inesperado, mas que só surpreende à primeira vista. Um significativo contraponto desse fato é que, por um lado, nenhum dos grandes teólogos católicos jamais falou tão negativamente da sexualidade; como também, por outro lado, afirmaram que justamente por ser o sexo uma força natural fundamental do homem, proveniente do ato criador de Deus, uma força necessária e boa, deve também ser controlada pelo homem de modo especial. E o sentido da quarta virtude cardeal, da Temperança, é precisamente a realização da ordem interna da pessoa.

Mas tudo isto ainda está formulado de maneira excessivamente inofensiva: ainda nem se manifestou o caráter extraordinário, ou melhor, até mesmo misterioso da virtude da Temperança. Trata-se, na verdade, de que justamente as forças do ser do homem orientadas por natureza para a autoconservação, aperfeiçoamento e realização, são aquelas mesmas forças que podem também desnaturar-se para a autodestruição. Todas elas e, talvez, somente elas. A sexualidade é apenas uma dessas forças e é dela que menos se precisa falar especificamente, na medida em que o cristão entenda que a castidade não visa à repressão da força sexual mas a defender-se da autodestruidora perversão dessa força. Como também, naturalmente, nem o prazer nem a reta afirmação de si parecem condenáveis ao cristão. Mas - tema também da Temperança - encontrar uma compreensível fundamentação antropológico-ética para o jejum e para a abstinência, como também para a virtude da humildade, já parece mais difícil.

Pior ainda é que províncias inteiras do reino dessa força fundamental chamada Temperança se tornaram quase sem nome no pensamento contemporâneo. Como expressar, por exemplo, a força da ira, a capacidade de irar-se, que, nos ensinamentos vitais da grande tradição cristã pertence também aos impulsos fundamentais imprescindíveis do ser humano, e que foi considerada sua real capacidade de resistência? Sem a força para a ira - é o que se diz no pensamento cristão o homem permanece passivo e inerte diante das injustiças que acontecem no dia-a-dia. Mas, ao mesmo tempo, essa mesma força, se não é controlada, pode destruir totalmente a convivência - por exemplo, sob as formas, conhecidas por todos, de irreconciliabilidade e amargor, que envenenam o clima de relacionamento com os outros, sobretudo se espicaçadas ideologicamente.

É triste encontrar o reto controle sobre a força da ira, a virtude cristã da mansidão, equivocadamente confundida com essa pálida incapacidade para a ira que, como todos sabem, navega sob essa mesma bandeira. Na verdade, mansidão no sentido original significa aquela força interior (atualmente incapaz de ser denominada por uma palavra com vida, frescor e vigor) da qual a Escritura diz que é por ela que o homem guarda sua alma (Ecli 10,31).

O mais surpreendente, entretanto - e é algo simplesmente inacreditável - parece-me ser o fato de que uma determinada força fundamental do homem - da qual os antigos, com justeza, tratam exaustivamente - seja simplesmente silenciada e omitida no pensamento cristão atual sobre a Temperança. E isto, apesar de essa força dizer respeito, mais do que nunca, precisamente à vida dos nossos dias. Refiro-me à ânsia, à concupiscência de ver. Poder-se-ia, nesse caso, como o fazem os grandes mestres, antes de mais nada, falar do caso geral de concupiscência do saber; e não é pouco o que haveria aí para dizer. Naturalmente, ao contrário dos Antigos, não falaríamos, dentre as formas de perversão do desejo de saber, de magia; mas a pergunta sobre se não estamos dispostos a pôr em jogo o bem a integridade da Humanidade pela resolução de um problema científico - ou se até já não o estamos fazendo - bem que pode ser atual.

Mas, permaneçamos no desejo de ver com os próprios olhos, em sentido literal, que realmente constitui um dos mais fortes impulsos do homem: "Preferimos o ver a qualquer outra coisa" lemos já no primeiro capítulo da Metafísica de Aristóteles. Para mostrar até que ponto isso é verdade, não nos custaria muitas palavras; como também não seria difícil evidenciar que a autonomia da vida intelectual se baseia - em boa medida - justamente em assegurar-se da verdade pelo "ver com os próprios olhos".

Mas também aqui claramente vale o contraponto: que esta força fundamental necessita de maneira especial de controle, porquanto ela pode, como quase nenhuma outra, degenerar autodestruidoramente. E aqui acontece que, literalmente, não dispomos de nome para a virtude nem para o vício.

Pois se encontramos o descontrole do desejo de ver, nos Antigos, sob o nome de "curiosidade" (curiositas), pensamos antes na perdoável fraqueza da vizinha e não no verdadeiro e profundo mal que a "concupiscência dos olhos", este "ver por ver", pode causar na existência humana. E, quanto ao vocábulo tradicional para o harmônico controle do querer ver, studiositas, ele simplesmente não significa mais nada.
Martin Heidegger designou por "curiosidade" (Neugier) aquilo que realmente queriam dizer os Antigos com curiositas: o que interessa à curiosidade não é a captação da realidade, mas a "possibilidade de abandonar-se ao mundo".

Penso que deveria ser possível mostrar claramente a um contemporâneo crítico da "geração TV", o perigo - que tão profundamente atinge a existência (e do qual estamos aqui tratando): o de perder, no meio do barulho ensurdecedor, ótico e acústico, de vazias baboseiras, a capacidade original de captar a realidade. O controle do "desejo de ver", tão vital hoje como antigamente, poderia alcançar um valor quase salvador na medida em que, por uma ascese do conhecimento, conservássemos aquilo que desde sempre perfaz uma existência humana plena de sentido: ver a realidade criada por Deus tal como ela é, e viver e agir da verdade assim apreendida.

Josef Pieper

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